Os diretores João Marcelino e Henrique Fontes, a dramaturga Clotilde Tavares e a atriz Quitéria Kelly durante ensaio do Cena Aberta Formação. Foto: Alex Régis |
Yuno Silva - Repórter
A construção coletiva de um novo espetáculo requer sintonia dos envolvidos e um movimento constante de retroalimentação: diretor, dramaturgo, elenco, cenógrafo, compositor, preparador corporal e iluminador fazem parte de um mesmo organismo ainda amorfo, cujo ponto em comum é uma ideia, um mote que norteia a criação de uma história e seus personagens. Esse é o desafio encarado pelo grupo comprometido com a gestação de "Os perigos de Vitória", montagem infanto-juvenil desenvolvida há quase quatro meses na Casa da Ribeira pelos participantes do projeto Cena Aberta Formação. O processo está adiantado, e a estreia marcada para o próximo dia 6 de março.
O elenco é formado por cinco atores ainda desconhecidos do grande público, afinal estão em formação como bem sugere o título do projeto, mas a turma que conduz o trabalho do quinteto tem bagagem e experiência: Clotilde Tavares assina a dramaturgia, Henrique Fontes está à frente da direção, João Marcelino garante figurinos, cenário e iluminação, Luiz Gadelha compõe a trilha sonora original. A equipe se completa com Cláudia Viana (preparadora corporal), Heliana Lima, que cuidou da preparação local, a atriz Quitéria Kelly na assistência de direção e Pedro Fiuza no registro audiovisual. Em cena Glacyane Azevedo, Hugo Ferreira, Jociel Luis, Luana Vencerlau e Marina Chuva, pinçados a partir de uma seleção que envolveu 71 candidatos.
"Quando Henrique me chamou para participar deste trabalho, adiantou que a construção da dramaturgia deveria ser feita de forma colaborativa", contou a escritora Clotilde Tavares, que há oito anos não se envolvia formalmente com teatro. "Apresentei esquetes com a cigana Gipsy, durante a Virada Cultural em dezembro, mas desde 'Alguém lá fora' (2004), que fiz a direção, não participava de um projeto teatral", lembrou. Durante esse período ficou dedicada à literatura.
Clotilde disse que havia apenas uma única pista para começar: o espetáculo, dirigido à crianças e jovens e que deveria agradar adultos, iria trabalhar a jornada do herói. "Coisa que todos nós experimentamos todos os dias". O processo de estruturação da história e dos personagens começou em novembro.
Ela apresentou um esboço do roteiro e contou com a reação do elenco para ir juntando as peças: "Era história de quê? De uma menina com quase 12 anos que desconfia que algo anormal está acontecendo em casa e isso vai lançá-la em uma aventura... Na medida que vamos inventando, vejo a reação dos atores, o que eles oferecem, e vamos criando". Nisso entra João Marcelino com algum elemento cênico novo, Luiz Gadelha com uma canção, e assim segue o processo colaborativo.
Apesar do perfil coletivo, Clotilde ressalta que o papel do dramaturgo está preservado, pois é ele "quem domina a 'carpintaria' do texto, que trabalha e depura as informações, seleciona o material fornecido pelas outras pessoas envolvidas no processo e dá a forma final", explica.
Elenco heterogêneo marca o grupo selecionado
Uma das características mais pungentes do elenco é a disparidade dos perfis: cada um traz experiências distintas, nem sempre ligadas às artes cênicas, e talvez seja por isso que faz do processo criativo de "Os perigos de Vitória" mais desafiador. A paraibana Luana Vercerlau, 29, é a mais experiente do grupo: "Sempre trabalhei como atriz, não sei fazer outra coisa", confessa. Hugo Ferreira, 21, participou do Arte Ação, também desenvolvido pela Casa da Ribeira, e largou o trabalho de garçon para "ser feliz nos palcos". Já Jociel Luis, 27, estava esperando um emprego como eletricista antes de emplacar no Cena Aberta. Marina Chuva, 29, faz dança na UFRN mas não sabe se vira monja ou atriz: "A rotina é algo novo na minha vida", avalia. Enquanto Glacyane Azevedo, 26, se reencontrou como atriz após a frustração de não ter sido autorizada pela família para fazer um teste no Rio de Janeiro.
O projeto remunera os participantes com bolsa de R$ 1,2 mil durante quatro meses, após esse período dividem bilheteria ou recebem cachê fechado quando as apresentações são para alunos da rede pública de ensino - previsto no projeto aprovado via Lei Câmara Cascudo com patrocínio da Cosern e Governo do RN.
Bate-papo
João Marcelino, Diretor, cenógrafo e figurinista
'A cidade estava órfã de formação', diz Marcelino
Qual a importância de se apostar em projetos que investem na qualificação do artista?
A razão pela qual aceitei o convite de participar do Cena Aberta Formação foi justamente a possibilidade de trabalhar o fomento e a formação, um quesito em baixa por aqui. Com o fechamento do Centro Experimental de Teatro, a cidade ficou órfã e restaram poucos mecanismos para contribuir com a orientação de jovens atores. Lembro de pessoas que saíram do Centro de Experimental para as universidades, e esse projeto vem para preencher essa lacuna. Considero estar retribuindo o que fizeram comigo no início da carreira, e percebo que há um respeito por estarem recebendo minha colaboração. Não sei se o espetáculo será um sucesso, isso é o que menos interessa, o importante é que importa.
Inevitavelmente seu nome está bastante atrelado aos Autos (Chuva de Bala e Auto da Liberdade) em Mossoró. Como anda sua atuação no teatro em outras frentes?
Minha participação nos espetáculos de menor porte é constante, o lance é que não aparecem tanto, não estão na mídia. Tenho feito vários projetos com o Grupo Imbuaça, de Aracaju (SE), notícias que não chegam por aqui. Atualmente eles estão circulando pelo país com duas peças dirigidas por mim: "A farsa dos opostos", com texto de Clotilde Tavares escrito há 20 anos; e "A grande serpente", de Racine Santos. Também estou envolvido em outro projeto com a Cia A Máscara de Teatro (de Mossoró), o espetáculo "Viagens aos campos de alfenim" que marca minha estreia como dramaturgo - um desafio e tanto, diferente do que geralmente faço. A montagem está em fase de captação, mas queremos estrear no início do segundo semestre.
Ainda sobre os Autos, é um formato superado? Ainda há fôlego?
Os Autos são sempre grandes projetos e quem souber fazer consegue perpetuar. É um lugar para formar artistas, muita gente boa que está por aí saiu dos Autos. Em Mossoró mesmo, por exemplo, tem o Ícaro Mendonça, que se tornou um dos coreógrafos mais promissores de sua geração. Começou nos Autos e hoje é professor de dança coreógrafo de companhia. Sem falar que sempre recebo ligação de professores do Deart/UFRN como Sávio Araújo, dizendo que recebeu mais um aluno que passou por mim nos Autos. O que o RN precisa é criar mecanismos e ferramentas para fomentar pesquisa, estudo, formação, qualificação, aprofundamento.
Link: http://tribunadonorte.com.br/noticia/teatro-a-toda-forca/243359
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